Dispositivos Oclusais e Apneia Obstrutiva do Sono: Da Evidência Científica para a Prática Clínica

Este artigo analisa as evidências científicas sobre o uso de dispositivos oclusais em pacientes com bruxismo e síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS). Estudos apontam que placas estabilizadoras, como a de Michigan, podem agravar a obstrução das vias aéreas em indivíduos com SAOS. A literatura atual recomenda cautela e indica os dispositivos de avanço mandibular (DAM) como alternativa mais segura e eficaz.

Dentista, você já se perguntou se um paciente com Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) pode receber uma Placa de Michigan, a antiga placa miorrelaxante?

Se você nunca se perguntou sobre isso, continue a leitura desse artigo e no final, você vai entender o porquê não.

A ocorrência simultânea de bruxismo do sono (BS) e síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) representa um desafio clínico complexo, que exige uma abordagem interdisciplinar e discernimento apurado na escolha das modalidades terapêuticas. A literatura evidencia a ocorrência de atividade muscular mastigatória rítmica, que determina bruxismo do sono nas polissonografias tipo I ou tipo II, após eventos de microdespertares com aumento na atividade simpática, aumento na atividade cerebral e taquicardia (Del Fabbro et al., 2025), muito comuns em episódios de apneia. Tradicionalmente, os dispositivos oclusais estabilizadores (Placas de Michigan) têm sido um pilar no tratamento do BS para proteger a integridade dental e aliviar sintomas associados. Entretanto, a crescente compreensão da fisiopatologia da SAOS e a interação entre essas duas condições têm levantado sérias questões sobre a segurança e a indicação desses dispositivos em pacientes com SAOS.


O Surgimento da Preocupação: Elevação da Dimensão Vertical e Agravamento da Obstrução da Via Aérea Superior

A compreensão de que a manipulação da oclusão e da posição mandibular pode influenciar a patência da via aérea superior não é recente. No entanto, a investigação direta dos efeitos de aparelhos oclusais estabilizadores (que tipicamente promovem uma elevação da dimensão vertical de oclusão sem avanço mandibular) em pacientes com SAOS começou a ser realizada nas últimas duas décadas.

1. Gagnon et al. (2004): A Primeira Sugestão de Evidência de Risco em Nível Individual

Os autores selecionaram 10 pacientes com diagnóstico de ronco e apneia para participarem do estudo. Dados iniciais de tempo total de sono, eficiência do sono, número de despertares, microdespertares, índice de apneia-hipopneia por hora de sono (IAH), índice de distúrbios respiratórios por hora de sono (IDR) e porcentagem do tempo de sono com ronco foram coletados. Uma semana depois os pacientes retornaram para um novo registro dormindo com a placa superior. Nenhuma diferença estatisticamente significativa no IAH foi observada entre as noites sem e com placa. Contudo, quatro pacientes experimentaram um agravamento na categoria de diagnóstico de apneia na noite em que usaram a placa. O IAH aumentou em mais de 50% em 5 dos 10 pacientes. O IDR mostrou um aumento de 30% das noites iniciais para as noites com placa. A porcentagem do tempo de sono com ronco também aumentou em 40% com a placa. Com isso, os autores sugeriram que o uso de uma placa oclusal estaria associado a um risco de agravamento dos distúrbios respiratórios. O princípio seria que o aparelho intra-oral de Michigan seria responsável por levar a mandíbula para uma posição mais posterior, aumentando a obstrução.

2. Nikolopoulou et al. (2011): A Segunda Evidência de Risco em Nível Individual

Este ensaio, embora com um desenho de estudo preliminar e uma amostra pequena, investigou diretamente o efeito do aumento da dimensão vertical de 6 mm (interincisal) nos valores de IAH em pacientes com SAOS. Entretanto, diferentemente do estudo anterior, neste utilizaram um dispositivo de avanço mandibular (DAM) ajustado em 0% de protrusão. A análise em nível de grupo não revelou uma alteração estatisticamente significativa no IAH. No entanto, a nível individual 50% dos pacientes (9 de 18) apresentaram um agravamento no IAH com o uso do dispositivo. Destes, dois pacientes demonstraram um agravamento clinicamente significativo. Os autores hipotetizaram que a elevação da dimensão vertical, sem a protrusão mandibular, poderia modificar a patência da via aérea superior ao reduzir o espaço da língua e promover uma rotação posterior da mandíbula, favorecendo o colapso da via aérea. Esta pesquisa sinalizou que, embora o efeito médio em um grupo pudesse ser neutro, o risco de agravamento para subgrupos de pacientes era real e substancial, resultando em potencial piora da apneia apenas com o aumento da DVO e sem avanço mandibular em um grupo de pacientes com SAOS.

3. Nikolopoulou et al. (2013): Confirmação Estatística em um Ensaio Controlado Randomizado

Dois anos depois, a equipe de Nikolopoulou et al. publicou um ensaio clínico randomizado e controlado que solidificou as preocupações iniciais. Utilizando um desenho longitudinal em 10 pacientes com SAOS leve a moderada, o estudo avaliou o efeito de uma placa oclusal maxilar que promovia uma elevação da mordida de aproximadamente 1,0 mm no primeiro molar. Os resultados foram estatisticamente significantes: o IAH médio com a placa (17,4 ± 7,0 eventos/hora) foi significativamente maior do que sem a placa (15,9 ± 6,4 eventos/hora) (p = 0.025). Embora o aumento médio no IAH tenha sido relativamente pequeno (1,4 ± 1,7 eventos/hora). O intervalo de confiança de 95% foi de -1,9 a 4,7, confirmando o resultado do ensaio anterior, de que o aumento na dimensão vertical devido ao uso de uma placa oclusal pode piorar os eventos de apneia e hipopneia em alguns pacientes com SAOS e não ter efeito negativo em outros. Os autores, embora questionando a relevância clínica do pequeno aumento médio, enfatizaram que dentistas deveriam estar cientes do risco potencial de SAOS em seus pacientes ao prescreverem tais dispositivos.

4. Kuwashima et al. (2019): Uma Perspectiva em Pacientes sem SAOS Prévia

Em contraste com os estudos anteriores que focavam em pacientes já diagnosticados com SAOS, o artigo de Kuwashima et al. (2019) trouxe uma nuance importante. Este estudo avaliou o impacto de placas oclusais em pacientes com disfunção temporomandibular (DTM) que não tinham um diagnóstico prévio de SAOS. Os resultados demonstraram uma redução estatisticamente significativa no IAH no grupo teste, que usou placas oclusais (maxilares ou mandibulares), em comparação com a análise inicial e também em comparação com o grupo controle (que não usou placa). A placa maxilar, em particular, mostrou reduções significativas em IAH e IDO tanto na posição supina quanto não-supina. Os autores sugeriram que, nesta população de pacientes, o aumento da dimensão vertical poderia ter beneficiado a respiração. Apesar disso, esta pesquisa destaca a importância da população estudada: enquanto os estudos anteriores indicaram risco em pacientes com SAOS, Kuwashima et al. sugerem que, em pacientes sem SAOS prévia, o uso de placas oclusais que aumentam a dimensão vertical pode ser benigno ou até benéfico. Isso implica que a presença de SAOS estabelecida é um fator crítico na resposta à placa oclusal.

5. Bartolucci et al. (2023): Uma Revisão Sistemática Avaliando Aumento da Dimensão Vertical em Dispositivos de Avanço Mandibulares (DAMs)

Avançando para 2023, a meta-análise de Bartolucci et al. ofereceu uma perspectiva sobre o aumento da dimensão vertical em um contexto mais amplo: sua influência no uso de DAMs. Curiosamente, este estudo concluiu que não havia correlação significativa entre a elevação da mordida oclusal (dentro de DAMs) e a taxa de sucesso (melhora do IAH) em relação a SAOS. É fundamental interpretar este achado com discernimento. Enquanto os estudos de Gagnon et al. e Nikolopoulou et al. se concentraram em aparelhos oclusais sem protrusão mandibular ativa, a meta-análise de Bartolucci avaliou o papel do aumento da dimensão vertical em dispositivos que também realizavam avanço mandibular. A ausência de correlação entre aumento da dimensão nas DAMs e a taxa de IAH pode sugerir que os efeitos negativos da elevação da mordida (rotação mandibular, retração lingual) são, em certa medida, minimizados ou superados pela ação protusora mandibular que as DAMs geram, aumentando ativamente o espaço da via aérea. No entanto, Bartolucci et al. referenciam explicitamente os achados de Nikolopoulou et al. (2011 e 2013) ao discutir que aparelhos oclusais poderiam piorar distúrbios respiratórios do sono, confirmando a validade da preocupação levantada. A meta-análise reforçou a complexidade do desenho dos aparelhos e a necessidade de mais pesquisas padronizadas.

6. Dal Fabbro et al. (2025): A Consolidação da Orientação Clínica

A revisão narrativa e crítica de Dal Fabbro et al. sintetiza o conhecimento acumulado e oferece diretrizes clínicas para o manejo da ocorrência simultânea de BS e SAOS. Este artigo corrobora diretamente os achados anteriores, afirmando inequivocamente que “quando um indivíduo com SAOS utiliza uma placa oclusal para BS, existe um risco de piora do IAH ou do índice de eventos respiratórios (REI)”.

A revisão destaca os mecanismos pelos quais os aparelhos oclusais estabilizadores podem agravar a SAOS:

  • Aumento da Dimensão Vertical de Oclusão: altera a relação maxilomandibular.
  • Giro Posterior da Mandíbula: aumenta a distância entre a base da língua e a parede posterior da faringe, reduzindo o espaço da via aérea.
  • Retração da Língua: o espaço reduzido pode empurrar a língua para trás, obstruindo o fluxo aéreo.

Com base nessas evidências, Dal Fabbro et al. reforçam a contraindicação do uso isolado de placas oclusais estabilizadores em pacientes com SAOS e recomendam a utilização de Dispositivos de Avanço Mandibular (DAM) como a opção preferencial em casos de BS e SAOS, ou a combinação com CPAP, sempre sob supervisão médica.


Conclusão e Implicações para a Prática Odontológica

A evolução da literatura nos últimos anos tem delineado um consenso robusto: o uso de aparelhos oclusais estabilizadores, tradicionalmente empregados para o manejo do bruxismo, não é recomendado para pacientes com síndrome da apneia obstrutiva do sono. Os riscos associados a esses dispositivos, que incluem o aumento da dimensão vertical de oclusão, a rotação posterior da mandíbula e a consequente retração da língua, favorecem a obstrução das vias aéreas superiores e a exacerbação da SAOS. A imagem abaixo exemplifica o que ocorre com a mandíbula quando em uso de placa oclusal estabilizadora (à esquerda) em comparação à placa de acetato inferior dentada (à direita).

Para os colegas dentistas que tratam bruxismo e distúrbios do sono, a mensagem é clara e crucial:

  1. Rastreamento Abrangente: todo paciente que apresenta bruxismo deve ser rastreado para SAOS, utilizando ferramentas validadas como o questionário DP4.
  2. Diagnóstico Preciso: em casos de suspeita de ocorrência simultânea de BS e SAOS, é indispensável uma polissonografia ou teste de sono domiciliar para fechar o diagnóstico.
  3. Escolha Terapêutica Criteriosa: em pacientes com SAOS e BS simultâneos, os aparelhos oclusais estabilizadores tradicionais devem ser evitados. Dispositivos de Avanço Mandibular (DAMs) ou a combinação de duas placas dentadas isoladas em SAOS leves ou moderadas, ou a combinação de DAMs com CPAP em casos de apneia severa são as opções preferenciais, sempre em colaboração interdisciplinar.

A prioridade no manejo desses pacientes deve ser a segurança da via aérea e a saúde sistêmica, que a SAOS compromete severamente. A compreensão e aplicação dessas evidências não apenas otimizam os resultados terapêuticos, mas também protegem a vida de nossos pacientes. Por isso, se faz necessário o diagnóstico diferencial do bruxismo em 4 etapas, onde a terceira etapa são os exames diferenciais complementares.


Fique por dentro da ciência

Ensaio clínico randomizado controlado:

  • Ensaio Clínico (é um teste): é um estudo feito em pessoas para ver como uma intervenção funciona e se é segura.
  • Randomizado (por sorteio): os participantes são divididos em grupos totalmente por acaso (como jogar uma moeda). Isso é importante para garantir que os grupos sejam o mais parecidos possível em todos os aspectos, exceto pelo tratamento que vão receber. Assim, evita-se o favoritismo ou o viés.
  • Controlado (com comparação): sempre há pelo menos dois grupos: um recebe o novo tratamento que está sendo testado (teste) e o outro não recebe o novo tratamento (controle). Ele pode receber um tratamento antigo, um placebo ou nenhuma intervenção. Isso permite comparar os resultados e ver se o novo tratamento realmente faz diferença.
  • Desenho longitudinal: tipo de estudo onde você acompanha e coleta dados sobre os mesmos participantes várias vezes ao longo de um período.
  • Revisão Sistemática: tipo de estudo secundário, que compila, avalia criticamente e sintetiza todas as evidências disponíveis de estudos primários sobre uma pergunta específica. É uma “pesquisa sobre pesquisas”, feita de maneira estruturada para dar a melhor resposta possível.
  • Meta-análise: método estatístico que combina os resultados numéricos dos estudos selecionados em uma revisão sistemática, aumentando o poder estatístico para detectar efeitos que um único estudo isolado não conseguiria identificar.

Referências bibliográficas

Dal Fabbro C, Bornhardt-Suazo T, Landry Schönbeck A, de Meyer M, Lavigne GJ. Understanding the clinical management of co-occurring sleep-related bruxism and obstructive sleep apnea in adults: A narrative and critical review. J Prosthodont. 2025;34(S1):46-61. doi:10.1111/jopr.13966

Gagnon Y, Mayer P, Morisson F, Rompré PH, Lavigne GJ. Aggravation of respiratory disturbances by the use of an occlusal splint in apneic patients: a pilot study. Int J Prosthodont. 2004;17(4):447-453.

Nikolopoulou M, Naeije M, Aarab G, Hamburger HL, Visscher CM, Lobbezoo F. The effect of raising the bite without mandibular protrusion on obstructive sleep apnoea. J Oral Rehabil. 2011;38(9):643-647. doi:10.1111/j.1365-2842.2011.02221.x

Nikolopoulou M, Ahlberg J, Visscher CM, Hamburger HL, Naeije M, Lobbezoo F. Effects of occlusal stabilization splints on obstructive sleep apnea: a randomized controlled trial. J Orofac Pain. 2013;27(3):199-205. doi:10.11607/jop.967

Kuwashima A, Virk A, Merrill R. Respiratory effect associated with use of occlusal orthotics in temporomandibular disorder patients. Int J Oral-Medical Sciences. 2019;18:101-109. doi:10.5466/ijoms.18.101

Bartolucci ML, Incerti Parenti S, Bortolotti F, et al. The Effect of Bite Raise on AHI Values in Adult Patients Affected by OSA: A Systematic Review with Meta-Regression. J Clin Med. 2023;12(11):3619. doi:10.3390/jcm12113619

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